FLORES, FLORES PARA OS MORTOS
(Texto: Fernando Gabeira)
Sempre que os fatos ganham velocidade, costumo comprar um bloco
de notas. Anoto frases, idéias, intuições e deixo que se decantem com o tempo.
Carregando... Volto a elas, depois, para rejeitá-las ou desenvolvê-las. A
primeira frase que me veio à cabeça foi a da vendedora de flores que encerra um
filme.
O pequeno bloco também tem idéias. Por exemplo: comparar a ditadura com
o governo Lula. Uma neutralizou o Congresso pelo medo; o outro, pelo pagamento
de mesada. Ditadura e governo Lula compartilham o mesmo desprezo
pela democracia, ambos violentaram-na, reduzindo o Parlamento a uma ruína
moral.
Os militares prepararam sua saída de forma organizada. Nem muito
devagar, para não parecer provocação, nem muito rápido para não parecer que
estavam com medo. Já o núcleo duro do governo Lula parece perdido, batendo
cabeça, ou melhor, enfiando-a na areia, sem perceber que a polícia está
chegando e, daqui a pouco, alguém vai gritar na porta do Planalto: "Se
entrega, Corisco".
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Quando era menino e vivia em Juiz de Fora, fazíamos
rodas de capoeira, bastante rudimentares - confesso. Mas cantávamos: "A
polícia vem, que vem brava / quem não tem canoa, cai n'água". Tudo isso
jorra aos borbotões na minha caderneta. Anotei: chamar alguém do
"Guinness", o livro dos recordes, para saber se algum tesoureiro de
qualquer partido do mundo se desloca com batedores de motocicleta e carros
clones para iludir perseguidores;...
...se algum tesoureiro partidário se
desloca com jatos particulares, semanalmente; se introduz no palácio associação
de empreiteiros que receberam R$ 1,1 bilhão de dívidas. Os
militares batiam, davam choques e insultavam na sessão de tortura, mas vi
muitos dizendo que me respeitavam porque deixei um bom emprego para combatê-los
com risco de vida. Eles viam ideais no meu corpo arrasado pelo tiro e pela
cadeia.
O PT queria que eu abrisse mão exatamente da minha alma, e me tornasse
um deputado obediente, votando tudo o que o Professor Luizinho nos mandava
votar. Os militares jamais pediriam isso. Desde o princípio, disseram que eu
era irrecuperável e limitaram-se à tortura de rotina. Jamais imaginei que seria
grato aos torturadores por não me pedirem a alma. Não sabia que dias tão
cinzentos ainda viriam pela frente. Que seria liderado por um homem que achava
que Maurício de Nassau era um deputado de Pernambuco. Logo eu, que sou
admirador de um deputado pernambucano chamado Joaquim Nabuco.
Foram os anos
mais duros de minha vida. No meu caderno anoto frases e indicações da
semelhanças da luta contra a ditadura e da luta contra este governo, desde que
comecei a criticá-lo, com a importação de pneus usados. As pessoas têm suas
carreiras, seus empregos, sua racionalizações. É preciso respeitá-las,
atravessar o deserto sem ressentimentos. Agora, sobretudo, é preciso respeitar
o sofrimento dos vencidos.
Outro dia, quando me referi a um núcleo na Casa
Civil como um bando de ladrões que atentava contra a democracia, uma jovem
deputada do PT estremeceu. Senti que não estava ainda preparada para essas
palavras cruas. E fui percebendo pelas anotações que talvez estejam aí, para o
escritor, o mais rico manancial de toda essa crise. Como estão as pessoas do
PT? Como se ajustam a essa nova realidade? Que destino tomaram na vida? Procuro
não confundir, entre os que ainda defendem o governo, aqueles que são cínicos,
cúmplices e os outros, que apenas obedeceram as ordens sob a forma da aplicação
do centralismo democrático. Alguns defendem porque ainda não conseguiram
negociar com sua própria dor. Não podem suportá-la de frente. Mas terão de
fazer algum dia, porque, por mais ingênuos que sejam, já perceberam que a mãe
está no telhado. Vamos ter de encarar juntos essa realidade.
A grande
experiência eleitoral da esquerda latino-americana, admirada por uma Europa
desiludida com Cuba e Nicarágua, a grande novidade que verteu tintas...
...atraiu sábios, produziu livros e seminários, vai acabar na delegacia como um
triste fato policial de roubo do dinheiro público e suborno de parlamentares.
Só os que se arriscarem a ir até o fundo dessa abjeção, compreendê-la em todos
os seus detalhes mórbidos, têm chances de submergir para continuar o processo
histórico. Por incrível que pareça, o Brasil continua, e a vontade de mudar é
mais urgente do que em 2002 e 2006... Por isso, proponho agora um curto e
eficaz trabalho de luto. Anotação final: começaram o espetáculo da CPI,
secretárias e suas agendas, ex-mulheres e suas mágoas, vampiros, sanguessugas,
mensaleiros, arapongas, tesoureiros e seus charutos, Vossa Excelência para cá,
Vossa Excelência para lá, sigilos bancários, telefônicos, emocionais.
Carregando... Viu, Duda, que cenas finais melancólicas quando um mercador tenta
aplicar à complexidade da política a singeleza do vendedor de sabonetes?
Texto
veiculado no jornal Folha de S. Paulo, disponível na página
http://www.gabeira.com.br.
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